O Banquete e a figura do daimon platônico
Platão; Daimon; Banquete; Eros
Desde há muito tempo é clássica e controvertida a questão sobre o “Sócrates histórico” e, nesta via, se e o quanto os diálogos de Platão poderiam servir de testemunho, pelo menos de alguma forma, para o tratamento do tema. É bastante sabido o quanto os “socratikoi logoi” concorrem entre si para uma possível configuração do que poderia ter sido o pensamento do Sócrates histórico. Neste contexto, veio a se consolidar a ideia de que os diálogos iniciais de Platão, chamados, por isso mesmo, “diálogos socráticos” poderiam servir – mesmo que lidos com certa cautela – para indicar algo do que teria sido a “filosofia” do velho mestre. Nesta direção, duas leituras básicas podem ser consideradas aqui: aquela segundo a qual estes textos do jovem Platão serviriam como testemunho “histórico” decisivo; e outra para a qual, ainda que possamos distribuir os diálogos – desde o método estequiométrico – como mais ou menos próximos de Sócrates, mesmo os mais juvenis não poderiam servir como “testemunho” histórico, mas, apenas, se muito, poderiam indicar algo na direção de uma dependência ou possível proximidade entre os dois pensadores.
Nos limites de uma pesquisa de mestrado em filosofia, gostaríamos de propor uma abordagem desde a seguinte cautela metodológica: sem decidir sobre a última questão (seja ou não válida a ideia de tomar os diálogos de juventude como “testemunho” legítimo para determinação do pensamento do Sócrates histórico), talvez possamos pressupor que os diálogos ditos de “juventude” de Platão possam indicar algo do pensamento de Sócrates – na medida em que Platão não poderia ser desconsiderado como um testemunho minimamente bem informado. Isso significa assumir que a divisão clássica dos diálogos (desde os estudos de estilometria e estabelecidos por....) entre “juventude”, “maturidade” e “tardios” é defensável; além disso, que os primeiros, muito provavelmente, estejam mais próximos do ensinamento do mestre.
Por outro lado, também é bastante sabida a referência, presente nos testemunhos antigos, de que Sócrates teria insistido quanto à importância de um “daimon” para seu pensamento. Consideremos, como caso privilegiado, os testemunhos (não só de Platão) sobre o processo ao qual o filósofo foi submetido – que culminou em sua condenação – e que relatam a influência de um “daimon” em suas escolhas e comportamentos. Embora, no mais das vezes, estas referências sejam muito alusivas e pouco explicativas, elas parecem indicar uma relação significativa entre o pensamento de Sócrates e seu “daimon”, bem como sua importância para o processo de sua condenação.
Tendo em vista estas considerações iniciais, podemos formular uma hipótese de trabalho em torno da seguinte questão: seria possível determinar, de certo modo, qual poderia ter sido o papel do “daimon” na “filosofia” (se é que, de fato, ela existiu) de Sócrates? Os limites de uma dissertação de mestrado impedem que possamos explorar todos os aspectos envolvidos nesta questão, a começar pelo fato de que o tratamento adequado do “Sócrates histórico” exigiria uma análise das mais variadas fontes existentes. Por outro lado, na impossibilidade de confrontar estes testemunhos com algum texto do próprio filósofo ateniense, estas análises por mais exaustivas que fossem talvez nunca pudessem vir a ser inteiramente conclusivas.
A partir destas limitações, gostaríamos de formular nossa hipótese para oferecer um recorte para o tratamento da questão levantada. Numa palavra, pretendemos analisar dois diálogos de Platão nos quais o tema comparece de maneira central e, desde aí, tentar oferecer uma resposta parcial ao problema. O desenvolvimento desta hipótese implica, como se pode ver, assumir que os diálogos de “juventude” de Platão podem indicar algo sobre a “filosofia” de Sócrates, mesmo que não possam ser tomados, a rigor, como “testemunhos históricos”, e que, portanto, talvez possamos apenas indicar algo sobre a importância do “daimon” para o Sócrates “platônico”. Ainda que modestamente, esta pesquisa poderá contribuir para o debate mais amplo e, desde seus limites, oferecer elementos para o tratamento da questão geral tanto sobre uma possível “filosofia” do Sócrates histórico, quanto sobre a importância, decisiva ou não, do “daimon” nela.
Para tanto, o recorte de nossa pesquisa vai incidir sobre dois diálogos de “juventude” de Platão: Eutifron e Apologia de Sócrates. Embora nossas análises devam, muito provavelmente, exigir referências esparsas a outros diálogos, o objeto temático desta pesquisa ficará restrito a estes dois textos. Entendemos que sua análise, a reconstrução de sua estrutura argumentativa, a localização do tema em questão no movimento dialógico entabulado por seus interlocutores deverá oferecer elementos para uma resposta – mesmo que parcial, como já foi dito – para o problema acerca do possível lugar que o “daimon” poderia ocupar no pensamento do Sócrates (provavelmente, “platônico”).
Em outras palavras, pretendemos delimitar, na medida do possível, se e o quanto o “daimon” comparece como elemento decisivo para a “filosofia” ou pensamento do Sócrates – histórico ou platônico –, presente nestes diálogos.